De tempos em tempos o mercado das artes surpreende-se com um
novo fenômeno artístico surgido fora do ambiente acadêmico ou oficial.
Classificados como naifs ou bruts, esses artistas são prontamente
absorvidos pelo mainstream e cultuados por se originarem de classes sociais marginalizadas ou por
possuírem algum distúrbio mental. É este
último, o caso de Judith Scott.
No dia 01 de maio de 1943, na cidade de Columbus, em Ohio nascem as
irmãs Joyce e Judith ; Joyce tinha a saúde perfeita, mas sua irmã
gêmea, no entanto, era surda, muda e possuía um distúrbio genético causado pela presença de um cromossomo
21 a mais ou Trissomia do Cromossoma 2, popularmente conhecida como Síndrome de Down -
na época, um grande mistério para a medicina.
Seguindo conselhos
médicos, em 18 de outubro de 1950,os pais de Judith colocaram-na em uma
instituição para deficientes mentais, onde permaneceu totalmente esquecida por
trinta e seis anos. No entanto, o sentimento de abandono sempre esteve presente
em sua irmã Joyce, o que a levou a requerer sua custódia, obtida somente em
1986, após ser constatado nos prontuários médicos que Judith não tinha recebido
diagnóstico adequado (nem mesmo sua condição de surdo/muda tinha sido
percebida) e que sofria de discinésia tardia (movimentos oro-mandibulares
comprometidos) em virtude de ter sido medicada com psicotrópicos.
Judith foi levada por sua
irmã para a California onde passou a frequentar o Centro de Arte de Oakland,
cujo propósito não era o da utilização da arte como terapia, mas o de
desenvolver as potencialidades artísticas de seus alunos. Inicialmente, Judith
sentava-se numa cadeira e tão somente sujava com tinta os papeis que eram
colocados à sua frente, até o dia em que Silvia Seventy, uma das professoras do
centro, ofereceu-lhe fios e pedaços de madeira. A partir de então, Judith
mergulhou num processo vertiginoso de criação, que deu origem a sua vasta obra
composta por esculturas abstratas de diversos tamanhos, formatos e cores que,
imediatamente, passam a chamar a atenção da direção do centro e de John
MacGregor, psicólogo e historiador de arte, que torna o trabalho de Judith
conhecido em todo mundo.
O processo de criação de Judith Scott consiste
pura e simplesmente em envolver com linha objetos por ela encontrados – ou
roubados - até se constituírem em esculturas de grande beleza e expressão. Ao
contrário de Artur Bispo do Rosário – artista brasileiro cujo trabalho foi
também identificado como “art brut” e cuja vida em muitos aspectos se assemelha
a de Judith e que construiu uma vasta obra cuja leitura imediata nos remete a
uma profunda necessidade de ordenação do mundo - o trabalho de Judith parece
advir de uma necessidade inconsciente de proteção dos objetos encontrados, uma
vez que os envolvia até não mais serem perceptíveis para logo depois, quando
considerava a obra terminada, serem entregues aos diretores do centro
O trabalho de Judith
tornou-se cobiçado pelos grandes colecionadores e, atualmente, integra os mais
importantes museus e galerias dedicadas a art
brut e já foi objeto de dois documentários: “Outsider: The Life and Art of
Judith Scott”, de Betsy Bayha e “¿Qué tienes
debajo del sombrero?”, de Lola Barrera e Iñaki Peñafiel. No último, sua Irma
Joyce relata o hábito desenvolvido por Judith de usar chapéus por ela decorados,
a partir do momento em que seu trabalho passa a ser reconhecido, numa clara
manifestação da construção de sua identidade e da recuperação de sua
auto-estima.
ART BRUT E
INCONSCIENTE
O
conceito de “art brut”, criado pelo
pintor francês Jean Dubuffet ao entrar em contato, no final da segunda guerra
mundial, com as obras de doentes mentais que, sob os cuidados de Leo Navratil –
um psiquiatra da Escola de Viana – eram encorajados a expressar os seus traumas
através de desenhos, atribui-se a toda arte nascida fora do âmbito da academia
e da cultura oficial e foi ampliado por Roger Cardinal, um crítico de arte
inglesa, que o estendeu ao campo dos artistas auto-didatas (os out-siders).
Tal conceito, atribuído aos artistas e
às suas obras, me parece questionável se levarmos em conta que o mesmo
reduzem-nos à uma “prateleira” – e utilizo o termo como uma critica à lógica do
mercado – impedindo-nos de perceber sua real dimensão, uma vez que o conceito
funciona como uma “etiqueta” que
imediatamente identifica, classifica e setoriza a obra e seu criador. E sabemos
que a verdadeira obra de arte é
exatamente aquela que escapa à tais classificações.
Segundo o analista suiço Carl Gustav Jung – um dos mais importantes pensadores do século XX –
permanecemos em nossa primeira infância
(de 0 a 7 anos) diretamente conectados ao inconsciente coletivo através
do que ele denominou “participação mística”, que podemos também chamar de idade
da inocência. Este estado permite que a
criança acesse com frequência, aspectos numinosos, vinculados ao divino e ao
transcendente, fontes da mais pura criatividade.
Em seu artigo sobre as obra de Pablo Picasso e de James Joyce publicado
no volume O Espírito na Arte e na Ciência, da editora Vozes, Jung recusa tais classificações (é o caso de
Picasso que teve parte de sua obra classificada como expressionista) atribuindo
essa necessidade ao excesso de racionalidade do homem moderno e sua permanente
recusa em acessar os conteúdos
inconscientes. Para Jung, a arte seria, juntamente com os sonhos, o principal
elemento catalisador do inconsciente e por isso, atividade fundamental para o
equilíbrio psíquico do ser humano.
Judith Scott, a meu ver, coloca em cheque a nossa racionalidade, que a
classifica de “doente mental” e à sua obra de “brut” ou “naif” numa tentativa
vã de apreender sua arte através da razão, que nos impede de perceber sua
dimensão inconsciente, arquetípica e transcendente - embora inconsciente,
arquetípico e transcendente sejam, também, conceitos, que jamais serão capazes de explicar a arte
pura de Judith Scott.
Mas pra que explicar? Contemplar
sua beleza já nos basta.