sexta-feira, 20 de junho de 2008

O QUARTO, DE HAROLD PINTER - UMA LEITURA ARQUETÍPICA

Rose, a mulher que cuida, que alimenta, que protege (aspecto positivo da anima) fala, fala e fala com Bert, um homem que nada responde (revelando a ausência de diálogo e de interação entre masculino e feminino) encontra-se num quarto (representação simbólica do aspecto mais íntimo da psique).
Este quarto faz parte de uma casa (representação da psique) que se encontra em ruínas.
Evidencia-se aqui o aspecto fragmentário, incompleto, em desequilíbrio de uma psique cujos pólos masculino/animus e feminino/anima não estão integrados.
A visita de um outro casal (Sr. e Sra. Sands)representa, portanto, uma ameaça. Como o casamento entre anima e animus poderá habitar um casa/psique em ruínas?
Uma das falas da mulher (Sra. Sands) nos chama atenção – “Eu não te coloquei no mundo”. Se por um lado, a esterilidade da mulher (que não gerou/colocou o homem no mundo) evidencia uma vez mais essa fragmentação da psique, por outro, reafirma a representação simbólica deste casal no texto de Pinter pois, se o homem não foi colocado no mundo pela mulher (“Então quem foi? È isso que quero eu quero saber. Quem colocou? Quem é que me colocou no mundo?” – diz o Sr. Sands), o Sr. e a Sra. Sands são um símbolo, como o são Adão e Eva, do casal primordial e da união dos opostos.

O numero do quarto – 7 – é outro elemento carregado de simbologia. No Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant o verbete dedicado ao SETE é um dos mais extensos. Listamos abaixo alguns aspectos ali contidos sobre o número 7:

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Inicialmente observou-se que o sete é o número da conclusão cíclica e da sua renovação. Tendo criado o mundo em sete dias, no sétimo Deus descansou e fez dele um dia santo; portanto, o sabá não é realmente um repouso exterior à criação, mas o seu coroamento, a sua conclusão na perfeição. É o que evoca a semana, que dura um quarto lunar.

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O número sete é o símbolo universal de uma totalidade, mas de uma totalidade em movimento ou de um dinamismo total. Como tal, ele é a chave do apocalipse (7 igrejas, 7 estrelas, 7 espíritos de Deus, 7 selos, 7 trombetas, 7 trovões, 7 cabeças, 7 calamidades, 7 taças, 7 reis).

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O Sete é usado 77 vezes no Antigo Testamento. O número sete, pela transformação que inaugura, possui em si mesmo um poder, é um número mágico. À tomada de Jericó, sete sacerdotes com 7 trombetas devem, no sétimo dia, dar sete voltas à cidade.

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O sete encerra, entretanto, uma ansiedade pelo fato de que indica a passagem do conhecido ao desconhecido: um ciclo concluído, qual será o próximo?

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O sete é também o número de satanás, que se esforça em imitar a Deus – um macaco de imitação de Deus. Assim, a besta infernal do Apocalipse (13, 1) tem sete cabeças. Mas, na maior parte do tempo, o vidente de Patmos reserva aos poderes do mal a metade de sete – três e meio – indicando com isso o fracasso das iniciativas do mal (Apocalipse 12,6) : o dragão não pode ameaçar a mulher (= o povo de Deus) mais que 1.260 dias = três anos e meio (ver ainda 12,14: três tempos e meio).


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No Talmude, os hebreus também viam no número sete o símbolo da totalidade humana, ao mesmo tempo masculina e feminina, através da soma de quatro e três. Com efeito, Adão, durante as horas do seu primeiro dia recebe a alma que lhe dá completa existência na hora quatro; é na hora sete que recebe a sua companheira, isto é, que se desdobra em Adão e Eva.

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O sete, soma do 4 fêmea e do 3 macho, é também o número da perfeição para os bambaras (grupo étnico que vive no oeste da África, principalmente em Mali mas também na Guiné, Burkina Faso e Senegal). O deus soberano, Faro, deus da água e do verbo, mora no sétimo céu, com a agua fecundadora que ele distribui sob a forma de chuva. É igualmente no sétimo céu que o sol cai, todas as noites, ao final do seu trajeto. A terra, como os céus, compreende sete andares e as aguas terrestres também são sete, assim como são os metais. O sete é, ao esmo tempo, o número do homem e do princípio do universo.
Como soma de 4 e 3, ele é o signo do homem completo (com seus dois príncipios espirituais de sexos diferentes), do mundo completo, da criação concluída, do crescimento da natureza. È também a expressão da Palavra Perfeita e, através dela, da unidade original.


Como vimos, a simbologia do número sete encerra, em várias culturas, o significado de perfeição, de completude. É extremamente significativo que seja o SETE que enumere o quarto onde a ação da peça se desenrola. E como se tivéssemos um devir às avessas. É dentro de um espaço representativo da perfeição, que vemos o desenrolar de um enredo que nos leva, no final, ao ato de violenta exterminação da sombra (representado pelo personagem Riley).
Sombra que, aliás, é o aspecto simbólico/arquetípico mais presente na obra. É dele (Riley) que se fala o tempo todo: Rose insiste em saber quem mora no porão; o Sr. e a Sra. Sands não o viram, apenas ouviram sua voz ( o que comprova mais um vez sua representação da completude); o Sr. Kidd , o Senhorio (representação da parte mais consciente da psique –o ego - sabe da existência da sombra, pode vê-la, conversa com ela e a traz do hades- o porão - ao mundo dos vivos).

É sobre ela (a sombra), portanto, que nos deteremos um pouco mais.



Não precisamos ser um quarto mal assombrado –
Nem precisamos ser uma casa.
O cérebro tem seus corredores – que vão além do material.
Muito mais seguro, é encontrar à meia-noite
Um fantasma esterno,
Do que confrontar sua contrapartida interior
– o anfitrião gelado.
Muito mais seguro, é galopar pela igreja
perseguido pelas pedras,
do que encontrar, desarmado, nosso próprio rosto
em um lugar ermo.
Nós mesmos, escondidos atrás de nosso rosto
- é o que mais aterroriza.
Um assassino escondido em nosso apartamento,
é um horror menor.
O corpo pede um revolver emprestado –
e tranca a porta,
que dá para um espectro superior
- ou mais.

Emily Dickinson



“Dentro de cada mulher e de cada homem, a caverna escura do inconsciente é a guardiã de sentimentos proibidos, desejos secretos e anseios criativos. Com o tempo, estas forças “escuras” adquirem vida própria e formam uma figura intuitivamente reconhecível – a sombra. Tema recorrente na literatura e na lenda, a sombra é como um gêmeo invisível, um estranho que mora dentro de nós, mas que não é quem somos. Quando a sombra age em público, vemos nossos líderes como vilões, incorrerem no escândalo e caírem em desgraça. Em nosso cotidiano, podemos ser dominados pela raiva, obsessão e vergonha ou depressão. Estas aparições da sombra nos mostram o Outro, uma força poderosa que desafia nossos melhores esforços para domesticá-lo ou controlá-lo.”

No livro O JOGO DAS SOMBRAS, de Connie Zweig e Steve Wolf, de cuja introdução foi retirado o trecho acima, os autores fazem (à luz da psicologia junguiana) um estudo de como a sombra age e se faz presente em todos os aspectos de nossa vida: no trabalho, nas amizades, nos relacionamentos afetivos...

È a sombra, a partir do momento que a ignoramos, que nos pega de surpresa e nos faz reféns levando-nos a atitudes, na maioria das vezes, agressivas contra aqueles que inconscientemente julgamos ser a representação do mal, o que pode gerar desde agressões verbais, assassinatos sem motivos relevantes (em decorrência de brigas no transito, por exemplo) ou massacres coletivos como o perpetrado aos judeus pelo nazismo.
O caso do rapaz que há poucos dias foi agredido por skinheads na Rua Augusta, é um exemplo claro do que a psicologia junguiana chama de “projeção de sombra”. É esse aspecto, que eu desconheço, que habita a caverna escura do meu inconsciente que eu projeto no outro e como não o aceito e não o compreendo, quero eliminá-lo.

Mas o grande paradoxo existente na sombra é que ela resulta do acumulo de nossas potencialidades criativas mais luminosas que o processo civilizatório nos fez renegar, esconder, castrar... É quando somos obrigados pela autoridade familiar ou social a reprimir nossas potencialidades inatas porque “não é educado”, “não é certo”, “é pecado” que vamos formando nossa sombra, como se carregássemos uma imensa sacola nas costas aonde vamos colocando essas potencialidades não compreendidas e aceitas durante o processo de nossa formação como indivíduos sociais. E quanto maior for o peso da sacola, mais encurvados psicologicamente falando ( e, às vezes, fisicamente também) vamos ficando.

Reconhecer e se apossar da nossa sombra é, consequentemente, encontrar esse lado luminoso, onde habita nosso ser criativo. E esse processo foi e continuará sendo objeto sobre o qual se debruça a arte, seja a literatura, a pintura, o teatro...

Diante da recusa do homem moderno de entrar em contato, de forma consciente, com seus aspectos sombrios, o teatro contemporâneo, e Harold Pinter é um de seus mais fortes representantes, vem se utilizando desses aspectos como matéria prima.
Em O QUARTO, o que Pinter nos revela de mais assustador é que seguimos eliminando a nossa sombra, incorrendo no risco de eliminarmos também a nossa luz. É o que acontece com Rose, cuja cegueira decorre da eliminação de sua sombra (Riley) pelo seu aspecto masculino não integrado (Bert).*

* Na cena final de "O QUARTO", Bert - o marido de Rose, de volta de um passeio com sua carreta, em que "retirou das estrada um carro que não andava, batendo nele" , encontra Rose com Riley e o mata violentamente.

Um comentário:

Ana Cabezas disse...

Hey, passei pelos seus blogs de novo, pra ler as coisas com mais calma!
Sabe que curti bastante um texto sobre o Pick Pocket lá no outro blog? Vi que já tem um ano, mas me escapou... Ainda não tinha lido!
Li com mais calma este "O Quarto", e achei bem legal sim! (Embora eu veja esta questão arquetípica com mais fluidez.)
Sete e sete são quatorze, com mais sete vinte e um.....
Beijos, César! E depois a gente fala mais pessoalmente.
(Ah, o link do Rrrroooorhe Drexler não tá funcionando...)